Sim, pessoas atendidas mentem para o terapeuta, e não é raro. Pode ser uma mentirinha para “suavizar” um fato, uma omissão calculada ou até um enredo inteiro inventado.
Isso acontece mais do que muita gente imagina e, acredite, não é sempre por maldade. Às vezes é defesa, às vezes medo, às vezes costume.
Para resolver o problema, o caminho é criar um ambiente onde a pessoa atendida se sinta segura para falar a verdade: sem sermões, sem sustos, sem medo de represália.
Isso inclui explicar claramente o sigilo, validar os sentimentos, evitar julgamentos e, quando necessário, ajudar a pessoa atendida a encontrar coragem para encarar a própria verdade, mesmo que aos poucos.
Ao ler este artigo até o fim, você vai:
- Entender as principais razões por que as pessoas atendidas mentem.
- Reconhecer sinais sutis de mentira ou omissão.
- Aprender estratégias para lidar com cada tipo de mentira.
- Descobrir como transformar momentos de mentira em avanços terapêuticos.
- Garantir que seu vínculo terapêutico saia mais forte, não mais frágil, depois disso.
1. Vergonha e o medo de julgamento
Sim, muitas pessoas mentem ou escondem coisas na terapia por vergonha e medo de julgamento; é um atalho mental para preservar a própria dignidade, evitar rubor na cara e manter a imagem de “estou bem“.
Como terapeuta, vejo isso tanto em mentirinhas quanto em “não vou falar disso hoje” dito com um sorriso amarelo. É humano, não defeito; acontece também fora do consultório, acredite, com frequência.
Isso acontece porque somos treinados, desde cedo, a buscar aprovação e evitar humilhação.
A pessoa cria uma roupa emocional socialmente aceitável para entrar na sessão, tenta parecer adequada e salva a pele evitando pedaços doloridos da história: especialmente os que tocam em orgulho ferido, dinheiro, sexo, vícios, pequenas ilegalidades e recaídas que jurou não repetir.
Você sabia:
- A vergonha ativa respostas físicas: coração acelera, boca seca, olhar foge.
- Muita gente mente por omissão: fala 90% e deixa 10% fora, e o 10% costuma ser a chave.
- O medo de julgamento inclui o meu, o da família e o das redes sociais imaginárias.
- Quando a pessoa atendida diz “não lembro“, às vezes lembra sim; só não quer revisitar o cenário.
Observo pausas, risos fora de hora, mudanças no corpo, contradições entre sessões e “buracos” em relatos.
Se o assunto some sempre no mesmo ponto, ali mora um segredo. Cruzo esses sinais com perguntas gentis e hipóteses testáveis.
Se a narrativa ganha coerência e alívio depois da verdade, bingo, estávamos diante de vergonha disfarçada de prudência.
Para aprofundar o tema, recomendo o guia O que fazer com pacientes que não querem estar em terapia?. Ele mostra caminhos práticos para lidar com resistência sem briga, só com estratégia e acolhimento.
2. Proteger a própria narrativa
Sim, muita gente mente para proteger a própria narrativa: a história coerente que conta sobre si mesma.
Quando um fato ameaça essa história: “não sou ciumento, sou excelente com dinheiro, nunca perco o controle“, surge a tentação de editar a realidade.
Mentir, nesse caso, vira cola de identidade: mantém as peças no lugar, mesmo que o quebra-cabeça não combine com a vida real.
Fazemos isso porque o cérebro odeia contradição. A tal dissonância cognitiva aperta e a pessoa prefere ajeitar o relato a encarar o desconforto da mudança.
No consultório, isso aparece como recordações seletivas, culpados externos e heróis internos. Não é maldade; é medo de perder um papel importante: o do “eu que dá conta“, mesmo quando não está dando conta.
E quando a vida muda mais rápido que o roteiro, a pessoa tenta congelar o filme: edita cenas, corta falas, pinta finais felizes que ainda não aconteceram. Tudo para aguentar o tranco.
Narrativa que protege | Risco percebido ao contar a verdade |
---|---|
Eu controlo tudo | Ser visto como fraco ou desorganizado |
Não sou a pessoa ciumenta | Encarar perdas, traumas e inseguranças antigas |
Meu casamento é ótimo | Ter de tomar decisões difíceis e impopulares |
Eu só bebo socialmente | Receber orientações sobre limites e mudança de hábitos |
Minha lógica clínica aqui é rastrear costuras no enredo. Procuro onde a história é firme demais para um humano comum, onde faltam cenas importantes e onde a emoção não bate com o texto.
Peço exemplos concretos, comparo versões entre semanas e avalio o que melhora quando a narrativa flexibiliza.
Em alta entre os leitores:
Se, ao ajustar a história, a pessoa respira melhor e as relações ficam menos tensas, encontramos a mentira de manutenção do personagem.
E quando a narrativa é usada para evitar o rompimento com a própria terapia? Ajuda muito ler o passo a passo Como falar para a Psicóloga que não quer ir mais?, que ensina a dizer basta com respeito, clareza e zero drama.
3. O medo das consequências
Sim, muita gente mente por medo das consequências: contar a verdade pode parecer abrir a jaula do leão.
A pessoa imagina “se eu disser isso, vão me obrigar a algo“, ou “ele vai contar para alguém” e pronto, levanta o muro.
Para se proteger, suaviza fatos, muda números, omite nomes, e finge que está tudo sob controle, mesmo quando o barco está fazendo água.
Às vezes, isso nem é calculado; é reflexo de sobrevivência, aprendido em casa, na escola ou no trabalho, onde admitir problemas virou sinônimo de castigo.
Esse medo nasce de histórias reais e imaginadas. Muita gente já sofreu punição, exposição ou sermão em outros contextos, então antecipa que vai acontecer de novo.
Há também confusão sobre sigilo e limites legais, o que gera pânico do tipo “ele vai ligar para minha família” ou “vou perder meu emprego“.
Como a mente adora evitar dor imediata, mentir vira uma solução rápida, só que cara, porque atrasa o tratamento e mantém problemas escondidos.
Para clarear, veja medos comuns e como lidamos com eles:
- Medo de encaminhamento obrigatório
O que faço: explico criteriosamente quando a ética exige ação e quando não exige. - Medo de mudança radical no plano terapêutico
O que faço: combinamos passos curtos, revisões semanais e autonomia em cada decisão. - Medo de violação de sigilo
O que faço: detalho como o sigilo funciona, inclusive exceções, e reforço acordos por escrito. - Medo de julgamento moral
O que faço: separo pessoa de comportamento, mostro progresso medido e uso linguagem sem sermão. - Medo de consequências legais por confissões
O que faço: esclareço fronteiras terapêuticas e indico orientação jurídica quando necessário. - Medo de perder controle do ritmo
O que faço: criamos um botão de pausa e uma palavra-sinal para desacelerar quando precisar.
Minha lógica é reduzir a incerteza com transparência e contrato claro:
- Primeiro, mapeio riscos reais (lei, segurança, terceiros) versus medos imaginados;
- Segundo, explico cenário por cenário (se acontecer X, faremos Y), e ofereço escolhas.
- Terceiro, valido que coragem não é ausência de medo, é ação com proteção.
Quando a pessoa atendida entende o terreno, o muro desaba; e a verdade volta a entrar, com passo tímido, mas firme.
4. Testar a confiança e os limites do terapeuta
Sim, algumas pessoas mentem para testar a confiança e os limites do terapeuta; é tipo jogar uma isca e ver se o peixe morde.
A mentira, nesse caso, funciona como termômetro: “posso contar isso sem levar bronca?“, “ele guarda segredo mesmo?“, “até onde vai o profissionalismo dele?“
Quando a relação é nova, ou quando a pessoa atendida já foi traída, exposta ou julgada em outros lugares, a tendência é experimentar o terapeuta antes de entregar o coração (e os podres).
Isso acontece por causa de duas coisas: defesa e curiosidade.
- Defesa porque o vínculo terapêutico mexe com poder e vulnerabilidade; a pessoa atendida pensa “não vou me abrir de graça“;
- Curiosidade porque a pessoa quer ver se o terapeuta aguenta verdades difíceis sem virar juiz, amigo íntimo ou fofoqueiro.
Então surgem testes: atrasos para ver se há bronca, histórias com detalhes trocados para checar coerência, confissões editadas para medir sigilo, e até provocações sutis para mapear limites éticos.
Não é maldade, mas medo vestido de estratégia.
Teste comum | Mensagem escondida |
---|---|
Chegar atrasado de propósito | “Você me respeita quando eu falho?“ |
Mudar um detalhe do relato | “Você percebe incongruências sem me humilhar?“ |
Contar algo picante | “Você segura a onda sem virar moralista?“ |
Fazer elogio exagerado | “Você mantém a postura profissional?“ |
Sugerir toque/abraço | “Seus limites são claros e seguros?“ |
Na minha lógica clínica, eu cruzo três pistas: padrão, reação e contrato.
- Padrão: se o teste se repete, é dado, não acaso;
- Reação: observo o que muda quando respondo com firmeza gentil, sem bronca, sem drama, só clareza;
- Contrato: retomo os combinados (sigilo, tempo, limites) e explico por que eles existem.
Se, ao longo das semanas, a sinceridade aumenta e a ansiedade diminui, o teste cumpriu seu papel: a pessoa atendida confirmou que o espaço é seguro e não precisa mais do disfarce.
E quando a coisa encosta em toque físico, a regra é ouro: ética em primeiro lugar. Para entender melhor, veja o guia Quais os limites do toque físico entre terapeuta e paciente?, que explica quando um gesto é acolhimento e quando vira problema.
5. Dificuldade de acessar a própria verdade
Sim, muita gente mente porque não consegue acessar a própria verdade com clareza. Não é teatro; é neblina.
Trauma, negação, memória confusa, vergonha antiga e até dificuldade de nomear emoções fazem a pessoa falar o que parece certo, não o que é real.
Às vezes sai um “estou bem” quando, por dentro, está tudo em chamas; outras vezes a memória troca ordem dos fatos e a história vira lego sem manual.
Isso acontece porque o cérebro protege a gente do que dói. Negação, minimização e racionalização são “capas de chuva” emocionais.
Quem cresceu precisando ser forte o tempo todo aprende a desligar o termômetro: sente febre, mas diz que é “fresquinho”.
Tem também quem não reconhece emoções no corpo: confunde ansiedade com fome, tristeza com preguiça, raiva com cansaço.
Some experiências de blackout emocional (trauma, álcool, noites mal dormidas) e pronto: a pessoa jura que não mentiu… e não mentiu de propósito, só não alcançou a verdade completa naquele momento.
Sinais práticos de “não acesso” (e o que faço):
- Relatos sem emoção: trabalho vocabulário emocional básico e exemplos do dia a dia.
- Memória pulando etapas: mostro linha do tempo com datas, lugares e pessoas.
- Contradições leves entre sessões: comparo versões sem acusar; procuramos o “ponto cego”.
- “Não sei o que sinto“: uso escala simples (0 a 10), checagem corporal e cenas específicas.
- Humor que escapa (rir para não chorar): valido o riso e abro a porta para o choro seguro.
Minha lógica é de detetive gentil:
- Coleto microindícios (tom de voz, corpo, pausas);
- Peço exemplos muito concretos (o que aconteceu ontem às 19h?);
- Construo mapas visuais (linha do tempo, fluxos de gatilho → emoção → ação) e;
- Testo hipóteses pequenas.
Quando a narrativa fica mais redonda e o corpo relaxa, sei que saímos da neblina. A meta não é pegar a mentira; é ajudar a verdade a aparecer sem que a pessoa se sinta quebrada por ela.
Perguntas frequentes
- Mentir para o terapeuta atrapalha o tratamento?
Sim, atrapalha. É como tentar consertar um carro sem dizer onde está o barulho. O terapeuta até pode adivinhar, mas vai gastar mais tempo. - Toda mentira na terapia é consciente?
Não. Algumas vêm de defesa emocional ou memória confusa. Nem sempre a pessoa sabe que está omitindo. - O terapeuta percebe quando a pessoa atendida está mentindo?
Às vezes sim, às vezes não. Mas bons terapeutas notam padrões estranhos, pausas suspeitas e contradições. - É normal sentir vontade de esconder algo na sessão?
Totalmente. É um reflexo natural de autoproteção. O problema é quando vira hábito e bloqueia avanços. - O terapeuta pode “confrontar” a mentira?
Pode e deve, mas de forma respeitosa, sem humilhar. O objetivo é abrir espaço para a verdade. - A mentira pode ser um teste para o terapeuta?
Sim, especialmente no começo. É a forma da pessoa atendida medir confiança e segurança. - É melhor confessar que mentiu?
Sim. É como tirar um espinho do pé: dói um pouco, mas andar depois fica muito mais fácil. - Mentir sobre uso de drogas ou álcool é comum?
Sim, porque envolve medo de julgamento e vergonha. Mas contar a verdade pode mudar a estratégia do tratamento. - Mentir para proteger outra pessoa é justificável?
Pode ser compreensível, mas ainda assim dificulta o trabalho terapêutico. Existem formas de falar sem expor demais. - Existe mentira “boa” na terapia?
Mentira boa é meio mito. No máximo, existem omissões temporárias até a pessoa se sentir pronta. - O que fazer quando percebo que menti?
Fale na próxima sessão: olha, aquilo que eu disse não foi bem assim. É libertador. - Posso mudar de terapeuta se não me sentir à vontade para dizer a verdade?
Sim. E não precisa inventar desculpa, é seu direito escolher. - Mentir atrasa muito o progresso?
Geralmente sim. A terapia é mais rápida quando a verdade aparece cedo. - O terapeuta vai pensar mal de mim se eu mentir?
Profissional sério sabe separar comportamento de pessoa. O foco é entender o motivo da mentira. - Como parar de mentir para o terapeuta?
Comece por assuntos menos pesados, pratique dizer coisas difíceis, e vá aumentando a honestidade passo a passo.
Referências:
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