Quando a pessoa atendida mente para o terapeuta

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Tempo de leitura: 13 minutos

Pacientes mentem na terapia por vergonha, medo, proteção da imagem ou teste de confiança, mas a verdade é chave para um progresso real e duradouro.

Quando o paciente mente para o Psicólogo na terapia

Sim, pessoas atendidas mentem para o terapeuta, e não é raro. Pode ser uma mentirinha para “suavizar” um fato, uma omissão calculada ou até um enredo inteiro inventado.

Isso acontece mais do que muita gente imagina e, acredite, não é sempre por maldade. Às vezes é defesa, às vezes medo, às vezes costume.

Para resolver o problema, o caminho é criar um ambiente onde a pessoa atendida se sinta segura para falar a verdade: sem sermões, sem sustos, sem medo de represália.

Isso inclui explicar claramente o sigilo, validar os sentimentos, evitar julgamentos e, quando necessário, ajudar a pessoa atendida a encontrar coragem para encarar a própria verdade, mesmo que aos poucos.

Ao ler este artigo até o fim, você vai:

  • Entender as principais razões por que as pessoas atendidas mentem.
  • Reconhecer sinais sutis de mentira ou omissão.
  • Aprender estratégias para lidar com cada tipo de mentira.
  • Descobrir como transformar momentos de mentira em avanços terapêuticos.
  • Garantir que seu vínculo terapêutico saia mais forte, não mais frágil, depois disso.

1. Vergonha e o medo de julgamento

Sim, muitas pessoas mentem ou escondem coisas na terapia por vergonha e medo de julgamento; é um atalho mental para preservar a própria dignidade, evitar rubor na cara e manter a imagem de “estou bem“.

Como terapeuta, vejo isso tanto em mentirinhas quanto em “não vou falar disso hoje” dito com um sorriso amarelo. É humano, não defeito; acontece também fora do consultório, acredite, com frequência.

Isso acontece porque somos treinados, desde cedo, a buscar aprovação e evitar humilhação.

A pessoa cria uma roupa emocional socialmente aceitável para entrar na sessão, tenta parecer adequada e salva a pele evitando pedaços doloridos da história: especialmente os que tocam em orgulho ferido, dinheiro, sexo, vícios, pequenas ilegalidades e recaídas que jurou não repetir.

Você sabia:

  • A vergonha ativa respostas físicas: coração acelera, boca seca, olhar foge.
  • Muita gente mente por omissão: fala 90% e deixa 10% fora, e o 10% costuma ser a chave.
  • O medo de julgamento inclui o meu, o da família e o das redes sociais imaginárias.
  • Quando a pessoa atendida diz “não lembro“, às vezes lembra sim; só não quer revisitar o cenário.

Observo pausas, risos fora de hora, mudanças no corpo, contradições entre sessões e “buracos” em relatos.

Se o assunto some sempre no mesmo ponto, ali mora um segredo. Cruzo esses sinais com perguntas gentis e hipóteses testáveis.

Se a narrativa ganha coerência e alívio depois da verdade, bingo, estávamos diante de vergonha disfarçada de prudência.

Para aprofundar o tema, recomendo o guia O que fazer com pacientes que não querem estar em terapia?. Ele mostra caminhos práticos para lidar com resistência sem briga, só com estratégia e acolhimento.


2. Proteger a própria narrativa

Sim, muita gente mente para proteger a própria narrativa: a história coerente que conta sobre si mesma.

Quando um fato ameaça essa história: “não sou ciumento, sou excelente com dinheiro, nunca perco o controle“, surge a tentação de editar a realidade.

Mentir, nesse caso, vira cola de identidade: mantém as peças no lugar, mesmo que o quebra-cabeça não combine com a vida real.

Fazemos isso porque o cérebro odeia contradição. A tal dissonância cognitiva aperta e a pessoa prefere ajeitar o relato a encarar o desconforto da mudança.

No consultório, isso aparece como recordações seletivas, culpados externos e heróis internos. Não é maldade; é medo de perder um papel importante: o do “eu que dá conta“, mesmo quando não está dando conta.

E quando a vida muda mais rápido que o roteiro, a pessoa tenta congelar o filme: edita cenas, corta falas, pinta finais felizes que ainda não aconteceram. Tudo para aguentar o tranco.

Narrativa que protegeRisco percebido ao contar a verdade
Eu controlo tudoSer visto como fraco ou desorganizado
Não sou a pessoa ciumentaEncarar perdas, traumas e inseguranças antigas
Meu casamento é ótimoTer de tomar decisões difíceis e impopulares
Eu só bebo socialmenteReceber orientações sobre limites e mudança de hábitos

Minha lógica clínica aqui é rastrear costuras no enredo. Procuro onde a história é firme demais para um humano comum, onde faltam cenas importantes e onde a emoção não bate com o texto.

Peço exemplos concretos, comparo versões entre semanas e avalio o que melhora quando a narrativa flexibiliza.

Se, ao ajustar a história, a pessoa respira melhor e as relações ficam menos tensas, encontramos a mentira de manutenção do personagem.

E quando a narrativa é usada para evitar o rompimento com a própria terapia? Ajuda muito ler o passo a passo Como falar para a Psicóloga que não quer ir mais?, que ensina a dizer basta com respeito, clareza e zero drama.


3. O medo das consequências

Sim, muita gente mente por medo das consequências: contar a verdade pode parecer abrir a jaula do leão.

A pessoa imagina “se eu disser isso, vão me obrigar a algo“, ou “ele vai contar para alguém” e pronto, levanta o muro.

Para se proteger, suaviza fatos, muda números, omite nomes, e finge que está tudo sob controle, mesmo quando o barco está fazendo água.

Às vezes, isso nem é calculado; é reflexo de sobrevivência, aprendido em casa, na escola ou no trabalho, onde admitir problemas virou sinônimo de castigo.

Esse medo nasce de histórias reais e imaginadas. Muita gente já sofreu punição, exposição ou sermão em outros contextos, então antecipa que vai acontecer de novo.

Há também confusão sobre sigilo e limites legais, o que gera pânico do tipo “ele vai ligar para minha família” ou “vou perder meu emprego“.

Como a mente adora evitar dor imediata, mentir vira uma solução rápida, só que cara, porque atrasa o tratamento e mantém problemas escondidos.

Para clarear, veja medos comuns e como lidamos com eles:

  • Medo de encaminhamento obrigatório
    O que faço: explico criteriosamente quando a ética exige ação e quando não exige.
  • Medo de mudança radical no plano terapêutico
    O que faço: combinamos passos curtos, revisões semanais e autonomia em cada decisão.
  • Medo de violação de sigilo
    O que faço: detalho como o sigilo funciona, inclusive exceções, e reforço acordos por escrito.
  • Medo de julgamento moral
    O que faço: separo pessoa de comportamento, mostro progresso medido e uso linguagem sem sermão.
  • Medo de consequências legais por confissões
    O que faço: esclareço fronteiras terapêuticas e indico orientação jurídica quando necessário.
  • Medo de perder controle do ritmo
    O que faço: criamos um botão de pausa e uma palavra-sinal para desacelerar quando precisar.

Minha lógica é reduzir a incerteza com transparência e contrato claro:

  1. Primeiro, mapeio riscos reais (lei, segurança, terceiros) versus medos imaginados;
  2. Segundo, explico cenário por cenário (se acontecer X, faremos Y), e ofereço escolhas.
  3. Terceiro, valido que coragem não é ausência de medo, é ação com proteção.

Quando a pessoa atendida entende o terreno, o muro desaba; e a verdade volta a entrar, com passo tímido, mas firme.


4. Testar a confiança e os limites do terapeuta

Sim, algumas pessoas mentem para testar a confiança e os limites do terapeuta; é tipo jogar uma isca e ver se o peixe morde.

A mentira, nesse caso, funciona como termômetro: “posso contar isso sem levar bronca?“, “ele guarda segredo mesmo?“, “até onde vai o profissionalismo dele?

Quando a relação é nova, ou quando a pessoa atendida já foi traída, exposta ou julgada em outros lugares, a tendência é experimentar o terapeuta antes de entregar o coração (e os podres).

Isso acontece por causa de duas coisas: defesa e curiosidade.

  1. Defesa porque o vínculo terapêutico mexe com poder e vulnerabilidade; a pessoa atendida pensa “não vou me abrir de graça“;
  2. Curiosidade porque a pessoa quer ver se o terapeuta aguenta verdades difíceis sem virar juiz, amigo íntimo ou fofoqueiro.

Então surgem testes: atrasos para ver se há bronca, histórias com detalhes trocados para checar coerência, confissões editadas para medir sigilo, e até provocações sutis para mapear limites éticos.

Não é maldade, mas medo vestido de estratégia.

Teste comumMensagem escondida
Chegar atrasado de propósitoVocê me respeita quando eu falho?
Mudar um detalhe do relatoVocê percebe incongruências sem me humilhar?
Contar algo picanteVocê segura a onda sem virar moralista?
Fazer elogio exageradoVocê mantém a postura profissional?
Sugerir toque/abraçoSeus limites são claros e seguros?

Na minha lógica clínica, eu cruzo três pistas: padrão, reação e contrato.

  • Padrão: se o teste se repete, é dado, não acaso;
  • Reação: observo o que muda quando respondo com firmeza gentil, sem bronca, sem drama, só clareza;
  • Contrato: retomo os combinados (sigilo, tempo, limites) e explico por que eles existem.

Se, ao longo das semanas, a sinceridade aumenta e a ansiedade diminui, o teste cumpriu seu papel: a pessoa atendida confirmou que o espaço é seguro e não precisa mais do disfarce.

E quando a coisa encosta em toque físico, a regra é ouro: ética em primeiro lugar. Para entender melhor, veja o guia Quais os limites do toque físico entre terapeuta e paciente?, que explica quando um gesto é acolhimento e quando vira problema.


5. Dificuldade de acessar a própria verdade

Sim, muita gente mente porque não consegue acessar a própria verdade com clareza. Não é teatro; é neblina.

Trauma, negação, memória confusa, vergonha antiga e até dificuldade de nomear emoções fazem a pessoa falar o que parece certo, não o que é real.

Às vezes sai um “estou bem” quando, por dentro, está tudo em chamas; outras vezes a memória troca ordem dos fatos e a história vira lego sem manual.

Isso acontece porque o cérebro protege a gente do que dói. Negação, minimização e racionalização são “capas de chuva” emocionais.

Quem cresceu precisando ser forte o tempo todo aprende a desligar o termômetro: sente febre, mas diz que é “fresquinho”.

Tem também quem não reconhece emoções no corpo: confunde ansiedade com fome, tristeza com preguiça, raiva com cansaço.

Some experiências de blackout emocional (trauma, álcool, noites mal dormidas) e pronto: a pessoa jura que não mentiu… e não mentiu de propósito, só não alcançou a verdade completa naquele momento.

Sinais práticos de “não acesso” (e o que faço):

  • Relatos sem emoção: trabalho vocabulário emocional básico e exemplos do dia a dia.
  • Memória pulando etapas: mostro linha do tempo com datas, lugares e pessoas.
  • Contradições leves entre sessões: comparo versões sem acusar; procuramos o “ponto cego”.
  • Não sei o que sinto“: uso escala simples (0 a 10), checagem corporal e cenas específicas.
  • Humor que escapa (rir para não chorar): valido o riso e abro a porta para o choro seguro.

Minha lógica é de detetive gentil:

  1. Coleto microindícios (tom de voz, corpo, pausas);
  2. Peço exemplos muito concretos (o que aconteceu ontem às 19h?);
  3. Construo mapas visuais (linha do tempo, fluxos de gatilho → emoção → ação) e;
  4. Testo hipóteses pequenas.

Quando a narrativa fica mais redonda e o corpo relaxa, sei que saímos da neblina. A meta não é pegar a mentira; é ajudar a verdade a aparecer sem que a pessoa se sinta quebrada por ela.


Perguntas frequentes

  1. Mentir para o terapeuta atrapalha o tratamento?
    Sim, atrapalha. É como tentar consertar um carro sem dizer onde está o barulho. O terapeuta até pode adivinhar, mas vai gastar mais tempo.
  2. Toda mentira na terapia é consciente?
    Não. Algumas vêm de defesa emocional ou memória confusa. Nem sempre a pessoa sabe que está omitindo.
  3. O terapeuta percebe quando a pessoa atendida está mentindo?
    Às vezes sim, às vezes não. Mas bons terapeutas notam padrões estranhos, pausas suspeitas e contradições.
  4. É normal sentir vontade de esconder algo na sessão?
    Totalmente. É um reflexo natural de autoproteção. O problema é quando vira hábito e bloqueia avanços.
  5. O terapeuta pode “confrontar” a mentira?
    Pode e deve, mas de forma respeitosa, sem humilhar. O objetivo é abrir espaço para a verdade.
  6. A mentira pode ser um teste para o terapeuta?
    Sim, especialmente no começo. É a forma da pessoa atendida medir confiança e segurança.
  7. É melhor confessar que mentiu?
    Sim. É como tirar um espinho do pé: dói um pouco, mas andar depois fica muito mais fácil.
  8. Mentir sobre uso de drogas ou álcool é comum?
    Sim, porque envolve medo de julgamento e vergonha. Mas contar a verdade pode mudar a estratégia do tratamento.
  9. Mentir para proteger outra pessoa é justificável?
    Pode ser compreensível, mas ainda assim dificulta o trabalho terapêutico. Existem formas de falar sem expor demais.
  10. Existe mentira “boa” na terapia?
    Mentira boa é meio mito. No máximo, existem omissões temporárias até a pessoa se sentir pronta.
  11. O que fazer quando percebo que menti?
    Fale na próxima sessão: olha, aquilo que eu disse não foi bem assim. É libertador.
  12. Posso mudar de terapeuta se não me sentir à vontade para dizer a verdade?
    Sim. E não precisa inventar desculpa, é seu direito escolher.
  13. Mentir atrasa muito o progresso?
    Geralmente sim. A terapia é mais rápida quando a verdade aparece cedo.
  14. O terapeuta vai pensar mal de mim se eu mentir?
    Profissional sério sabe separar comportamento de pessoa. O foco é entender o motivo da mentira.
  15. Como parar de mentir para o terapeuta?
    Comece por assuntos menos pesados, pratique dizer coisas difíceis, e vá aumentando a honestidade passo a passo.

Referências:

  • CARSON-ARENAS, A. The power of lying. 2020. Disponível em: https://lifestyle.inquirer.net/375480/the-power-of-lying/. Acesso em: 23 mar. 2025.
  • DOLL, S. Therapists’ Perceptions of Deception in Psychotherapy. Tese (Doutorado em Psicologia) – Columbia University, Nova York, 2016.
  • EMBODIED COUNSELING BLOG. What to do when clients lie in therapy. 2024. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2025.
  • FARBER, B. A.; BLANCHARD, M.; LOVE, M. Secrets and lies in psychotherapy. Washington: American Psychological Association, 2019.
  • HART, C. et al. Client deception in therapy is associated with worse therapeutic relationships and outcomes. Counselling and Psychotherapy Research, v. 23, n. 1, p. 67-75, 2023.
  • JALILI, C. Why some people lie to their therapists. Time Magazine, 17 dez. 2019. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2025.
  • KIM, S. Y. et al. Malingering. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island: StatPearls Publishing, 2024. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK507837/. Acesso em: 23 mar. 2025.
  • KOLOD, S. Honesty in therapy is key to its success. The Crimson White, 2022. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2025.
  • MERCKELBACH, H.; DANDACHI-FITZGERALD, B. Factitious Disorder. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island: StatPearls Publishing, 2024. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK532953/. Acesso em: 23 mar. 2025.
  • UOL VIVABEM. Maioria mente na terapia; qual o problema? Portal UOL, São Paulo, 15 jan. 2024. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2025.

4 respostas para “Quando a pessoa atendida mente para o terapeuta”

  1. Avatar de Eduardo
    Eduardo

    Olá, tudo bem?

    Ando meio desesperado ultimamente. Faço terapia há algum tempo, e minha psicóloga é excelente.

    Entretanto, já há algum tempo venho mentindo nas sessões. Ou melhor, omitindo coisas.

    Meu medo é a psicóloga solicitar a presença da minha esposa e/ou entrar em contato com meu psiquiatra (eles se conhecem). Não que eu deseje, mesmo (não diretamente), fazer alguma coisa “ruim”. Mas o pensamento de que “se algo de ruim me acontecesse” (um acidente fatal, uma doença terminal, etc) seria ótimo, não me sai da cabeça.

    Na verdade, sinto que não tenho mais jeito, que sou um caso perdido, e nem vontade mais de continuar o tratamento eu tenho (tanto medicamentoso quanto terapia).

    Bem, nem sei bem porque estou escrevendo isso aqui, mas a verdade é que não sinto mais vontade de nada, e não sei como dizer, ou não, tudo isto à minha psicóloga.

    1. Um dos pilares de uma boa relação terapêutica é a honestidade. Sendo assim, é importante que você trate desse mal estar diretamente com ela.

  2. Avatar de Darcy Angélica
    Darcy Angélica

    Boa Noite. O familiar de um paciente pode avisar ao psicólogo que o seu paciente mente nas consultas a fim de ajudar o mesmo a tratar determinados comportamentos?

    1. Em teoria, sim. No entanto isso pode bagunçar ainda mais a dinâmica das relações. Deve ser usado com parcimônia.

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